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Justiça de JF nega acesso à Lei Maria da Penha a mulher trans

Pedido de concessão de medidas protetivas é indeferido, e decisão é questionada por advogado
Fonte: Tribuna de Minas
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Foto: Renato Salles

Um despacho decisório da 2ª Vara Criminal de Juiz de Fora rejeitou o pedido de concessão de medidas protetivas no âmbito da Lei Maria da Penha a uma mulher transgênero. Em documento datado do último dia 14, o juiz de direito Edir Guerson de Medeiros afirma que “não se trata de uma vítima mulher, assim como as agressões não ocorreram em razão do gênero feminino”, ao embasar a rejeição da solicitação.

“Consigno que a Lei Maria da Penha é para proteção da mulher e está condicionada à demonstração da situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência da mulher, numa perspectiva de gênero, isto é, a violência deve se dar em razão do gênero feminino, não abrangendo motivações financeiras, econômicas ou desentendimentos de qualquer outro motivo que não seja em razão do gênero feminino”, diz o magistrado na decisão.

Vítima alega injúrias, ofensas e agressões

De acordo com o despacho, para solicitar a concessão da medida protetiva, a vítima alega, que, “desde que foi morar com a mãe, sofre agressões e ameaças constantes por parte do requerido”, no caso, o padrasto. A Tribuna teve acesso a um Registro de Eventos de Defesa Social (Reds) da Polícia Militar em que a mulher relata que é alvo de injúrias e ofensas do padrasto. Ela ainda diz possuir sensibilidade sensorial e que o homem bate as portas da casa com violência e de forma proposital, como provocação.

Segundo o boletim de ocorrência, a mulher ainda alega que, certa feita, o padrasto bateu com a bandeira de uma janela de madeira em sua mão direita, causando lesões nos dedos. Ainda de acordo com o Reds, o registro da ocorrência foi orientado após a vítima ter sido atendida pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher.

A reportagem ainda teve acesso ao registro do depoimento feito pela mulher à Polícia Civil, onde foi a vítima informada de que teria direito às medidas protetivas previstas pela Lei Maria da Penha.

Em 2017, desembargador do TJMG sinalizou entendimento contrário

A decisão é polêmica e questionada pela mulher que solicitou a concessão das medidas protetivas e também por seu advogado. Há histórico de decisões que trilham por caminhos distintos do apontado pela 2ª Vara Criminal de Juiz de Fora. Em 2017, o desembargador Flávio Batista Leite, então na 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do de Minas Gerais (TJMG), considerou em discussão semelhante na segunda instância que “a identidade de gênero deve ser definida como a experiência pessoal, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído biologicamente”.

O TJMG ainda informou que a Constituição Federal de 1988 e a Lei Orgânica da magistratura asseguram ao juiz o direito de tomar a decisão que ele entender pertinente, ou seja, segundo a interpretação que ele faz da lei. “Em contrapartida, o cidadão tem o direito de contestar esta decisão. No caso em questão, caso a pessoa julgue pertinente, ela tem o direito de recorrer”, diz o Tribunal, por meio de nota encaminhada à reportagem.

STF reconhece autodeclaração

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) também deu indicações de que a autodeclaração deve ser considera ao decidir que pessoas transexuais e transgêneros têm o direito de alterar nomes e sexo no registro civil sem a necessidade de realizar cirurgia de redesignação sexual e apresentar laudo médico pericial.

A maioria da Corte também decidiu que não é mais preciso ter uma autorização judicial para fazer a mudança, ou seja, os processos de retificação do registro civil vão ocorrer por via administrativa, sem a necessidade de judicialização.

Atualização da legislação aguarda debate no Senado desde 2019

Para aparar qualquer aresta sobre as discussões, o Congresso Nacional avalia dar contorno legal aos entendimentos já apresentados em alguns espaços jurídicos e discute um projeto de lei que coloca mulheres transgênero e transexuais sob proteção da Lei Maria da Penha. Em maio de 2019, o texto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Segundo o sistema da Casa legislativa, a matéria está pronta para discussão em plenário e aguarda inclusão na ordem do dia desde junho de 2019.

“Embora o foco inicial tenha sido a proteção da mulher, é cediço que o ordenamento jurídico deve acompanhar as transformações sociais. Nesse contexto, entendemos que a Lei Maria da Penha deve ter o seu alcance ampliado, de modo a proteger não apenas as mulheres nascidas com o sexo feminino, mas também as pessoas que se identificam como sendo do gênero feminino, como é o caso de transexuais e transgêneros”, argumentou o ex-senador Jorge Viana (PT-AC), quando da aprovação do texto na CCJ do Sanado. Autor da proposição, Viana apresentou o projeto em 2017.

Advogado da vítima questiona decisão

Advogado da vítima, Júlio Mota de Oliveira, que é homem trans, membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero OAB/MG, especialista em Relações de Gênero e Sexualidade pela FACED/UFJF e advogado voluntário do Centro de Referência LGBTQIA+ de Juiz de Fora, questiona o despacho decisório da 2ª Vara Criminal de Juiz de Fora.

“O artigo 5º da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) dispõe que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero. A maciça jurisprudência dos tribunais, inclusive do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, entende que não há distinção entre mulheres trans ou cisgêneras, pautando-se a aplicação pela identidade de gênero, extrapolando o determinismo biológico”, considera.

Para Júlio, a expressão “mulher” presente no artigo 5ª da Lei Maria da Penha “engloba tanto o sexo feminino, definido naturalmente, como o gênero feminino, que pode ser definido pelo indivíduo ao longo da vida”. “No caso concreto, a decisão prolatada pelo magistrado trata-se de uma aberração, contém erros grotescos que demonstram limitações como a incapacidade de diferenciar gênero de sexo biológico.”

O advogado defende ainda que o sexo biológico relaciona-se com as características anatômicas do indivíduo, já a identidade de gênero diz respeito a auto percepção e a forma que a pessoa se expressa socialmente. “Na decisão, ao mesmo tempo que o magistrado justifica que para a aplicação da Lei Maria da Penha a violência deve se dar em relação ao gênero feminino – que é exatamente o caso da vítima, por ser uma mulher transexual – este afirma categoricamente que a vítima não é uma mulher. Resta claro que mesmo diante da ADO 26 do Supremo Tribunal Federal que definiu a transfobia como crime de racismo social, as violências institucionais se mantêm, sendo perpetradas inclusive pelo Poder Judiciário brasileiro”, afirma

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